NATAL

 Conto de Thais Matarazzo

Publicado originalmente na antologia Vamos falar de S. Paulo? - vol.4 (Matarazzo, 2019)

Ilustração: Camila Giudice

Carlos e Solange estavam casados há cinco anos. Paulistanos da zona sul da cidade, adquiriram um apartamento em Vila Mariana, à Rua Tutoia. 

Ambos possuíam bons empregos, trabalhavam bastante - como a maioria dos paulistanos. Por vezes, a rotina era estafante, todavia, davam conta de pagar todas as despesas, a mais significativa era a prestação do apartamento, a ser quitado em 20 (longos) anos.

Ana Rita nasceu um ano após o casamento, dois anos passados, veio Maria Alice. Solange desdobrava-se nos cuidados com as meninas, que passavam a maior parte do dia em uma escolinha.

Carlos era químico e funcionário destacado da empresa empregadora. Nas horas vagas gostava de dedicar-se à música, sua verdadeira paixão. Aprendeu a tocar violão observando um tio. Aos nove anos já era o melhor aluno da escola musical do bairro. Só não tornou-se instrumentista profissional porque o pai não permitiu.

- Músico não é profissão de gente. Você quer passar fome, rapaz?, indagava o severo genitor, que o fez escolher entre as faculdades direito, química ou arquitetura.

Ele conheceu Solange no Parque do Ibirapuera. Encontraram-se quando pararam um instante para descansar da caminhada matinal, embaixo da sombra refrescante de um flamboyant. 

- Quer casar comigo?

- Que atrevimento é esse, cara? Não te conheço não faz nem cinco minutos... - retrucou Solange.

- Pois é, moça, eu tenho a sensação de te conhecer faz tempo..., Carlos falou baixinho, com um ar de encantamento, e lascou um beijo na bela morena.

Dali a 18 meses já estavam casados, com as benções de Deus e das respectivas famílias.

Todos ficavam abobados com a cumplicidade do casal. A compreensão de ambos era anormal.

- Jurei te amar e viver contigo na alegria e na tristeza, na saúde ou na doença, na riqueza ou na pobreza. - asserava Solange.

- Eu repito o mesmo, meu amor!

A vida seguia confortável e estável. Inclusive, a família passou um mês em viagem pelos Estados Unidos. Foi uma experiência maravilhosa. A pequena Ana Rita adorou conhecer a Disney. 

- Quem sabe ano que vem poderemos ir à Europa? - avaliou Carlos.

Na volta ao trabalho, ele foi avisado que a empresa abrira falência. Carlos ficou desesperado! Já possuía 12 anos de casa e estava arriscado a nada receber, precisaria, sim, era travar uma briga judicial. E como desgraça pouca é bobagem, o escritório aonde Solange trabalhava como secretária, encerrou as atividades na mesma ocasião.

A desalentada circunstância os deixou malucos. Com tantas dívidas e um padrão de vida custoso, como iriam fazer para bancar tudo dali para frente? Os parentes não eram ricos, poderiam auxiliar de maneira modesta nos primeiros meses, mas e depois? 

- O país atravessando uma grave crise econômica, como conseguiremos novos e bons empregos, Solange?

- Não sei. Entretanto, estaremos sempre juntos! - garantiu a consorte.

Os meses foram passando e as parcas economias do casal, minguando. Enviavam currículos sem parar... Vez ou outra eram chamados para entrevista, a esperança subia ao nível máximo, os corações palpitavam ritmados, entretanto, nenhuma efetivação.

- Mamãe, me dá um chocolate? - pediu Ana Ritinha. 

Solange ao olhar para a filha, chorou. Os armários estavam vazios. Em menos de uma semana precisariam entregar o apartamento. Foram viver de favor numa edícula da casa da tia Virgínia, em Santo Amaro.

- Como é duro cair do pedestal!

- Se é... A gente se acostuma com um padrão de vida confortável e de repente... Pluft! Não vamos desistir, Carlos.

Cansado da desesperança, Carlos decidiu que tocaria nas estações do Metrô paulistano.

- Irei junto para dar apoio e nossas filhas também, decidiu a esposa.

No princípio, constrangidos, ficavam corados quando alguém lhes ofertava dinheiro.

- Como a vida pode dar uma volta dessas, gente? Nunca me imaginei esmolar!

- É a crise! - respondeu alguém.

Passaram a perambular pelas estações metroviárias, observaram quais eram as mais movimentadas e para lá seguiam os quatro. As pessoas costumavam se emocionar com o repertório selecionado por Carlos e com o seu “jeito de tocar”, tão sentimental. Os seus olhos irradiavam a vergonha daquela situação, era a necessidade da sobrevivência. 

No estojo do instrumento, os passantes jogavam moedas e notas de pequeno valor. Ao contar a féria, o pouco valor arrecadado garantia a subsistência do dia a dia. 

Solange comprava duas quentinhas, uma dividia entre as filhas, e outra com o marido. Acostumados aos bons restaurantes da cidade, agora era preciso conformar-se com arroz, feijão, farofa, macarrão e uns pedacinhos de carne ou frango.

- Nessas horas, a mais simples comida tem o melhor bom gosto do mundo! - dizia Solange.

Carlos sentia-se ultrajado, não se conformava com aquilo, embora não deixasse de tocar todos os dias, como um último recurso para arrecadar algum dinheiro.  

Estava chegando o Natal, ele ficava triste ao observar o cansaço da esposa e das garotinhas. Começou a odiar São Paulo e sua vitrine miserável da pobreza. Tudo ia de mal a pior para ele e para muitos outros desempregados e moradores de rua.

- Cruzamos a cidade toda em busca de uns trocados. Como é difícil ser honesto neste país! Esse calor infernal de dezembro, nos deixa suados, ensebados, fedidos, famintos, verdadeiros trapos humanos. Isso não é vidaaaaaaaaaaaaaaa!!! - bradou Carlos cansados das injustiças da vida e do país.

Solange arregalou os olhos e o tentou acalmas.

- Por hoje já chega, vamos para casa!

- Não, ainda falta a estação da Sé, já vão dar seis da tarde, vamos para lá.

Os quatro deixaram a estação Brigadeiro, na Av. Paulista, e rumaram para o centro, na Sé. Cansado da exposição, Carlos resolveu que tocaria na saída para a Praça Clóvis Bevilacqua, ao final do grande e tortuoso corredor no sentido de quem sai para ir ao Poupatempo ou a Secretaria de Fazenda.

Solange abriu o estojo do violão e Carlos começou a tocar músicas natalinas, as mais conhecidas do público. Chorava copiosamente, o desespero era notório. Estava tocando com a alma e o coração. A esposa arranjou um caixote e sentou-se ao lado do marido. Ana Rita ficou entre os dois, e a pequena Ana Alice estava no carrinho, adormecida, apesar da temperatura abafante.

As pessoas começaram a se aglomerar próximo do músico, todos estavam extasiados pelo som. Cada um depositava no estojo do violão o que tinha nos bolsos. Uma senhora que passava apressada, com receio de ser assaltada por algum “pivete”, seguia direto quando, de repente, a música despertou à sua atenção e ela regressou. Observou a família ali, acuada, sem respaldo, notou que não pareciam moradores de rua, tinha “bom aspecto”. Enfiou a mão na bolsa, vasculhou lá no fundo e encontrou a carteira. Retirou, com cuidado, a única nota de 50 reais que possuía e a colocou no estojo. Aplaudiu Carlos e saiu rapidamente, pois tinha um compromisso.

Era mais ou menos 20 horas quando ela voltou para tomar o metrô e ir para casa, e notou que o casal continuava lá. O coração falou mais alto e ela resolveu abordá-los.

Solange acabou por contar toda a desdita que vinham passando. Revelou que o marido estava depressivo e ela estava segurando-se para não desabar também. 

- Mas juramos estarmos juntos na riqueza ou na pobreza. É uma grande provação o que estamos vivendo, sabe, senhora. Iremos superar tudo isso, Deus é maior! - desabafou.

A mulher, sensibilizada pelo sofrimento alheio, entregou um envelope à Solange. 

- Não abra agora, somente quando chegar a sua casa.

- Está bem. Muito obrigada!

E a senhorinha desapareceu como um redemoinho.

O casal não conteve-se e antes de chegar a casa, abriram o envelope e viram um lindo Cartão de Natal e seis notas de cem reais. “É para a ceia de Natal da sua família e para comprar uma lembrancinha para as meninas. Felicidades, saúde e paz! Que o próximo ano possa trazer boa sorte para vocês. Vera Lúcia”, estava registrado no cartão. 

O casal ficou emocionado.

- Ainda existe gente boa neste mundo, Carlos. Vamos acreditar que tudo irá melhorar - articulou Solange.

Comentários

  1. Uauuuu!
    Que texto vivo, real(diz do momento que estamos vivendo mundo afora), emocionante e, acima de tudo, educativo(mostra caminhos tomados a a tomar)!
    Meus aplausos Thaís👏👏👏

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