Odalisca

Crônica de Thais Matarazzo

Série Memórias da Infância

Aqui na Freguesia do Ó, bairro paulistano onde moro com minha família, existe uma famosa Escola de Samba, a Rosas de Ouro (fundada em 1971, mas na Brasilândia), vencedora de vários carnavais. Também tem outras pequenas e singelas agremiações carnavalescas que gravitam em torno da Rosas de Ouro, como a Iracema lábios de mel (inspirado no romance Iracema, de José Alencar), que fica perto da minha casa.

Meus primos maternos mais velhos chegaram a desfilar na Rosas de Ouro, no final dos anos 1980, mas meu pai nunca permitiu que minha irmã caçula e eu assistíssemos aos desfiles no bairro ou no sambódromo, quer dizer, no período da infância e adolescência... Como ele não gosta de Carnaval, achava que nós também não deveríamos gostar (uma grande bobagem!), então, nós assistíamos aos desfiles pela televisão mesmo, que remédio!

Minhas tias e primos chegaram a ajudar e trabalhar na produção de confecções de fantasias para a Rosas de Ouro, mas eles trabalhavam em casa. Era uma tremenda e cansativa labuta aquela. As encomendas chegavam no começo do ano e precisavam ser entregues poucos dias antes do Carnaval, dependendo do calendário, os desfiles aconteciam em fevereiro ou março. Foram muitos anos assim. Nós, crianças, ajudávamos com pequenos trabalhos como colar algumas peças ou costurar as lantejoulas, ou então, tínhamos de ir até a “venda” para comprar qualquer coisa que tinha acabado e era urgente a reposição para dar prosseguimento aos afazeres. Era tudo feito numa velocidade estonteante, as fantasias precisavam ficar prontas “para ontem”... Eu achava tudo maravilhoso, uma verdadeira oficina de artes, aquele colorido, as roupas brilhantes, parecia mesmo um sonho... A casa da minha madrinha, no bairro do Limão, tornava-se um verdadeiro “barracão”. Mesas e cadeiras de ferro espalhadas pelo quintal (era tudo coberto), com toda sorte de ferramentas, como tesouras e pistolas de cola quente, agulhas, linhas, barbantes, lantejoulas, apliques, contas, tecidos, outros acessórios e a máquina de costura que não parava dia e noite. Quando uma fantasia ficava pronta, era uma festa! Esse foi o maior contato que tive com o Carnaval, ou melhor, com a sua fase de produção.

Quando eu tinha uns 11 ou 12 anos, a agremiação Iracema lábios de mel teve um desfalque com uma criança que ficou doente e iria sair de odalisca num dos carros alegóricos. Naquela época, a escola desfilava nas ruas do bairro, passava na frente da minha casa, e meu pai permitia que assistíssemos ao desfile do portão, sob os olhares atentos da minha mãe. Misturar-se com os foliões, nem pensar... A gente sambava (ou melhor, ensaiava uns passos) na calçada e se divertia à nossa maneira.

Voltando à menina odalisca, os membros da “Iracema” estavam desesperados à procura de uma garotinha nas adjacências para fazer a substituição; nenhuma mãe estava permitindo a participação das filhas crianças, até que foram bater na nossa porta, eles nem começaram a falar e minha mãe terminou o diálogo com um ressonante NÃOOOO! Nunca ela permitiria que suas pimpolhas tomassem parte de um desfile de Carnaval! Ai, Jesus!

Fiquei triste, porque gostaria de ter saído de odalisca, me lembro da fantasia, era cor de rosa, com um veuzinho simpático, uma tiara muito brilhante de bijuterias e uma sandália cor de prata. Parecia uma coisa tão simples, o cortejo que não sairia das ruas contíguas, não sei porque meus pais faziam tamanha tempestade em copo d’água. Bom, criança não entende “com profundidade” certas situações, mas a turma da agremiação “era da pesada”, conforme voz corrente naquela época.

Acabou que a filha de criação de uma vizinha, a Kátia (digamos que esse era o seu nome), acabou sendo a odalisca. Ela era danada, tinha 9 anos, e não foi pedir permissão aos pais. Foi o diretor da escola de samba que abordou a menina e fez o convite. Enfim, a Kátia desfilou no carro alegórico, pulava e cantava com toda alegria do mundo, seus olhos verdes brilhavam como duas esmeraldas e as melenas loiras cintilavam com a luz do luar... De repente, a mãe da sapeca menininha apareceu procurando-a desesperadamente... Alguém apontou o paradeiro da procurada e foi d. Maria olhar para o lado e ver a Kátia lá no alto do carro alegórico.

Estava armada a confusão!

D. Maria (um metro e meio de dinamite) perdeu o juízo e saiu insultando todo mundo. Aflita em meio à multidão, ela tentava abrir caminho para alcançar a filha e proferia “cobras & lagartos” dirigidas à diretoria da humilde Iracema lábios de mel...  Kátia notou o reboliço e a gritaria da mamãe – que ecoava mais que a bateria –, mas a garota não perdeu o rebolado. Que cena!

Kátia seguiu o desfile até o fim da avenida principal, com a mãe quase enfartando... A apoteose não acabou bem, ela puxou Kátia e começou a lhe dar broncas e sopapos para todos verem. Essa desobediência custou-lhe um bom e prolongado castigo.

Só sei que toda vizinhança apoiou a d. Maria e o diretor da escola de samba “escutou o que não quis” por sua atitude incorreta, inclusive uma ameaça de processo. O Brasil passava por um momento econômico delicado, o Plano Collor, ninguém tinha dinheiro, vivia-se a contar moedas (quem as tinha). E a Iracema não possuía verba própria, os membros passavam o livro de ouro pela vizinhança, mas ninguém tinha muito para doar. A direção da escola pedia auxílio em todas as casas, menos na de d. Maria, pois sabia muito bem do erro cometido com a Kátia e se ousassem pisar naquela calçada, os carnavalescos iam dançar no ritmo das vassouradas e ao som das injúrias da nossa explosiva vizinha...

Comentários

  1. Gostei imenso, Thaís!
    Que tempo bom, por um lado - o da obediência aos pais - por outro nem tanto, dado que a lei de proteção à infância e juventude não existia como hoje.
    Mas, o melhor de tudo foi a realização pessoal da "odalisca" paulistana

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