Crônica de Thais Matarazzo
Série Memórias da infância
A segunda série do primário foi bastante divertida, um tempo de descobertas escolares e na vida familiar.
Reuni aqui
algumas passagens.
Eu estudava no
turno da manhã em uma escola pública na Freguesia do Ó. Naquela época, as 20
turmas do primário se reuniam no enorme pátio em filas distintas. Os baixinhos
na frente e os altinhos atrás. A distância entre cada aluno era medida com uma
esticada de braço do colega. Antes de entrarmos na sala cantávamos o Hino Nacional.
Às segundas-feiras, havia o hasteamento da bandeira brasileira, e todos entoavam o belo hino, levando a mão direita ao peito. Naqueles momentos eu me emocionava, aliás, o Hino à Bandeira, letra de Olavo Bilac e música de Francisco Braga, é o meu preferido até hoje:
Salve, lindo pendão da esperança,
Salve, símbolo augusto da paz!
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz.
Recebe o afeto que se encerra
Em nosso peito juvenil,
Querido símbolo da terra,
Da amada terra do Brasil!
Decorada com
muitos mapas e retratos de figuras históricas, a nossa sala me causava deslumbre!
A professora
se chamava Lídia e era muito engraçada. Excelente mestra. De estatura baixa,
tez morena, cabelos pretos, levemente ondulados, na altura dos ombros, trajava
calça e blusa de mangas médias, estava sempre de jaleco cor-de-rosa, com babados nas mangas e nos
bolsos. Tinha um forte sotaque nordestino.
Que docente
sensacional! Sua didática era mágica, fazia com que todos ficassem envolvidos
nas explicações. Incentivava a
leitura e a produção textual através da criatividade. Narrava muitas histórias
do nordeste e do folclore brasileiro.
Com a Lídia,
aprendemos a ler e a interpretar diversos mapas. Certa feita, ela pendurou um
mapa do Brasil na lousa e começou a perguntar para os discentes de onde vinham
seus pais, e sobre cada estado apontado, ela contava uma curiosidade. Eu sabia
que a mamãe é italiana, mas meu pai nunca havia perguntado. Por ser o meu nome
o último da lista de chamada, fiquei aguardando minha vez, prestei atenção ao que
os colegas respondiam. Ninguém citou o estado do Piauí. Não deu outra! Ao invés
de responder que não sabia onde papai havia nascido, disse que era piauiense.
O sorriso da
Lídia iluminou-se.
— Mande um grande abraço para o seu pai. É meu conterrâneo! — comentou a professora.
Já em casa, na
hora do almoço, indaguei ao meu pai “de onde ele era”? Contei sobre minha
sugestão, ele riu muito e respondeu que era paulistano.
No dia
seguinte, com um “carão”, fui dizer à professora que havia “errado a
localização”.
Em outra
ocasião, surgiu na aula o tema música popular brasileira. Lídia questionou os alunos sobre quais eram os seus
cantores preferidos. A maioria respondeu “— Xuxa!”. Eu falei que gostava da Carmen Miranda.
— Como assim,
Carmen Miranda?
— É sim, “fêssora”. Ela gravou uma música que o meu pai fez pra mim, Taí.
Achando minha
fala espirituosa, a professora mandou um recado para minha mãe.
Acontece que
para chamar nossa atenção em casa, meu pai criava umas histórias malucas,
parecia que ele tinha 200 anos e conhecia todo mundo! Eu acreditava em tudo.
Achava magnífico!
Papai havia
falado que compôs a marchinha Pra você
gostar de mim, a popular Taí, e
pediu para a Carmem Miranda gravar. A marchinha que eu conhecia de um disco 78
rotações!
Doce ilusão.
Ao ler o recado da professora, veio a triste constatação: ele inventou tudo.
Que tristeza! Então eu soube que a gravação era de 1930, ele não havia nascido
e o compositor era o Joubert de Carvalho. Fazer o quê? Nem por isso deixei de
gostar da Carmen e da sua irmã, Aurora Miranda.
Ilustração: Alexandre de Morais Almeida |
Da Xuxa, nunca
gostei. Quando eu fazia aniversário e alguém me presenteava com um disco da
apresentadora global, eu pegava uma caneta e riscava a figura da “rainha dos
baixinhos”. Essa aversão surgiu da tal “bota da Xuxa”, mais um produto da TV,
moda do final dos anos 1980. O calçado, na verdade, era uma geringonça que tinha
tiras até a altura do joelho, para serem amarradas, feito de um material
ordinário, machucava a pele, além de calçar mal. Era terrível andar com aquilo.
Um dia, sem minha mãe perceber, joguei um pé na lixeira. Inventei uma desculpa
qualquer para o sumiço da bota e ela até achou bom, porque eu reclamava que torturava
meus amados pezinhos.
Voltando aos
tempos do segundo ano, na hora do intervalo, de 30 ou 40 minutos, sempre
lanchava com meus amigos e amigas. Na lancheira plástica, havia suco em garrafinha térmica, um
sanduíche e balas de cereja, ela tinha o formato triangular e um sabor
delicioso, que nunca mais senti na vida. Em seguida, brincávamos de
corre-corre, pique-esconde, pega-pega, de ciranda, passa-anel, pulávamos corda
ou amarelinha, aliás, no pátio, tinha um desenho de amarelinha em forma de
caracol — meu preferido! Para acertamos a casa, jogávamos um
pedaço de madeira, pedrinhas, ou quando não tinha alternativa, papel higiênico
molhado, neste último caso, se fôssemos flagradas pela inspetora de alunos, recebíamos uma
advertência.
Além das
brincadeiras, gostava de frequentar a pequena biblioteca da escola, incentivada
pela Lídia, pegava muitos livros emprestados. Adorava uma coleção que trazia a
história das civilizações. Foi lá que tive acesso aos primeiros livros editados
da Tatiana Belinky — que viria a conhecer pessoalmente e se tornaria minha mentora —, são os títulos Transplante de
Menina, Colcha de Retalhos e Operação
do Tio Onofre, meus escolhidos e dos quais nunca mais esqueci.
Uma vez, a
professora pediu para que recolhêssemos folhas e sementes para uma aula
especial de botânica. Deveríamos organizar cada peça recolhida em uma folha do
caderno e tentar descobrir qual o nome da árvore ou planta, popular e
científico, e fazer um pequeno comentário.
Foi então que
fiz várias descobertas: no jardim da casa dos meus nonnos, havia um jardim (parecia uma floresta) com várias árvores,
arbustos e plantas em vasos diversos. O nonno
era extremamente caprichoso e amava a flora. Como bom italiano, tinha plantado,
naquele espaço de chão, árvores da sua terra natal, como figueira, amoreira,
pitanga e um limoeiro. Mudas que trouxe quando voltou à Itália, em 1971.
Ele me
arranjou várias folhas, flores e sementes, me ajudou a fazer aquela tarefa com
muita alegria. Para maiores detalhes sobre o material, fui consultar a
enciclopédia que tínhamos em casa, a Barsa,
e uma série de livros de botânica que meu pai tinha adquirido recentemente.
Na data de
entrega do trabalho, a docente gostou muito do meu, estava esmerado e bem
completo. Falei da ajuda do meu nonno.
Ela perguntou o nome dele. Eu não sabia responder. Acontece que os vizinhos e
inquilinos o tratavam por nonno, e os
parentes o chamavam de compadre ou tio. “— E o nome da nonna?” —
questionou Lídia. Igualmente, desconhecia. Quando cheguei a casa, mamãe é que
revelou os nomes: Valentino e Adelina!
Poderia contar
mais passagens dessa época feliz com a professora Lídia, mas termino com a
quadrilha da nossa turma na festa junina.
Nesse momento,
cada turma ensaiava uma dança para apresentar em um final de semana de junho,
no pátio da escola. Todos deveriam ir vestidos a caráter, como caipiras, e não
como à moda norte-americana. Nós ensaiamos a quadrilha ao som de uma música do
Mário Zan, com direito a um número extra, cantamos e dançamos com nossos
respectivos pares Moreninha linda, uma
cana-verde gravada por Tonico e Tinoco. Tudo isso foi-nos apresentado com
antecedência, em várias aulas temáticas. Nossa turma foi a vencedora das
quadrilhas! Nossa mestra valorizava muito a cultura nacional e nos passou esses
valores. Foi como plantar uma sementinha no meu coração.
Ah, se todas
as professoras fossem como a piauiense Lídia! Inteligente, vocacionada,
talentosa, sábia e
bem-humorada.
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