(Crônica de 30/7/2015)[1]
Por Thais Matarazzo
Hugo Giovanelli na reunião dos Colecionadores no Pateo do Collegio, em 2007. Foto: Thais Matarazzo |
Esta crônica é dedicada a uma vila encravada no coração do bairro do Belenzinho, zona leste de São Paulo, e a um filho ilustre do local, o artista plástico Hugo Giovanelli.
Conheci o sr. Hugo em 2002, nas reuniões
dos colecionadores de discos do Pátio do Colégio, no centro da cidade. Dentre
todos aqueles amigos, o sr. Hugo foi com quem encerrei mais afinidade, talvez
por sua sensibilidade de artista e sua gentileza, algo raro nos dias de hoje.
Ele foi o maior fã que conheci da
cantora e atriz Carmen Miranda. Também era apaixonado pela cidade do Rio de
Janeiro.
Em sua casa, na Rua Catumbi, 791, além
do seu ateliê, quase todos os ambientes eram decorados com seus quadros, vasos,
porcelanas, e também de retratos da “Pequena Notável”.
Como eu sou fã da cantora Aurora
Miranda, irmã de Carmen, conversávamos muito sobre o tema.
Um homem ligado às artes, amante do
cinema e da boa música, tornou-se notável como pintor, tendo realizado inúmeras
exposições em São Paulo, Rio e Minas Gerais. Seu acervo pessoal sobre Carmen
Miranda era fora de série. Costumava se corresponder com colecionadores da
Inglaterra, Estados Unidos e Austrália para troca de informações e materiais.
Sr. Hugo na década de 1970. Foto: reprodução |
Um dia, ele me convidou para conhecer a Vila Maria Zélia, que eu só conhecia de nome. Idealizada pelo industrial Jorge Street e projetada pelo arquiteto francês Pedaurrieux, a Vila foi inspirada nas cidades europeias do século XX. A construção decorreu de 1911 a 1916. Foi à primeira vila operária da Pauliceia. O batismo é um tributo a jovem Maria Zélia, filha de Street que faleceu aos 16 anos, vítima da tuberculose.
Com dificuldades financeiras, Street
vendeu a Vila para a família Scarpa, que a renomeou como Vila Scarpa. Em 1929,
passou para as mãos da família Guinle, que passou a denominá-la com o nome
antigo. Em 1969, passou a ser administrada pelo INPS (Instituto Nacional de
Previdência Social), atual INSS, e as casas foram vendidas aos trabalhadores e
antigos residentes.
Tudo isso, o sr. Hugo me contou no
pequeno percurso da sua casa na Rua Catumbi até a entrada da Vila, nas esquinas
das ruas Cachoeira e Prazeres.
“Essa Vila é uma sombra do que já foi!”,
advertiu
o sr. Hugo. Mas para mim foi uma surpresa descobrir aquele recanto – que mais
parece uma cidade do interior. Logo, ao passar a cancela de entrada, que
restringe o acesso de veículos, vê-se um jardim com grandes figueiras bravas e vários
bancos de madeira. No centro está a capela de São José, ladeada por dois
grandes armazéns: o da direita em total ruína e o da esquerda em melhores
condições. Em seguida, tem quatro ruas com as antigas casas dos operários da
Companhia de Tecidos Juta. A Vila funcionava como uma extensão da fábrica:
havia um rígido controle e normas disciplinares impostas pela direção. Tudo era
autossuficiente.
Mesmo vendo toda aquela decadência da
Vila, percebi que alguma beleza pairava no ar.
Quis saber do sr. Hugo como a família
dele foi morar na Vila?
Ele disse que a notoriedade do local era
enorme. Não demorou muito para essa fama ecoasse pelas cidades do interior de
São Paulo, como em Amparo, onde residia o seu pai, o italiano Hugo Giovanelli
(1869 – 1956), sapateiro de profissão, seus sete filhos e muitos outros
parentes.
Hugo ficara viúvo cedo, sua esposa Getulia
Baleze morreu no parto do sétimo filho. Viúvo e com tantas crianças para criar,
Hugo não demorou e contraiu matrimônio com Olga Franco (1888 – 1960)[2].
Em Amparo nasceram os três primeiros filhos do casal, Hugo (1912 – 1995), Maria
Getulina (1914 – 1999) e Zulmira (1917 - ?).
Como a situação financeira da família
não era das melhores, Hugo decidiu rumar para a capital paulista. Provavelmente
recebeu a proposta de algum parente que já estava em São Paulo. A família
Giovanelli deve ter chegado à Vila por volta de 1918 ou 1919.
O patriarca trabalhava como
sapateiro, em casa. Vários dos seus filhos, ainda pequenos, foram trabalhar na Fábrica da
Juta. Ali nasceram os últimos dois filhos do casal: Hugo (19/3/1922) e Rute
(1924).
"A Vila era uma maravilha! Tínhamos tudo
lá dentro: açougue, mercearia, salão de baile, escola primária, coreto,
farmácia, restaurante, posto de saúde, campo de futebol e muitas outras coisas.
Era proibido fazer qualquer reforma nas casas, até para trocar uma lâmpada era
preciso pedir autorização para o sr. João, uma espécie de fiscal da Vila. Minha
mãe foi uma heroína criou doze filhos e meu pai ‘bateu muita sola’ para criar
todos nós”, afirmou
o sr. Hugo – “Eu nasci em 19 de março de 1922 aqui na Vila. Minha mãe
contava que eram três da tarde quando a procissão passou na porta da nossa casa
e eu nasci. Por isso, sou devoto de São José e adoro o horário das três da
tarde. Fui batizado na capela da Vila. Eu sou o caçula dos homens e a minha
irmã Rute, dois anos mais nova do que eu, a caçula das mulheres”.
Os irmãos Hugo e Rute na porta da casa da Vila Maria Zélia, 1935. Foto: reprodução |
Capela de São José e armazéns da Vila Maria Zélia, década de 1920. Foto: reprodução |
Capela de São José em 2007. Na ocasião, já necessitava de reforma. Foto: Thais Matarazzo |
Hugo cresceu brincando com os meninos da
vizinhança. Teve uma vida humilde no seio de uma família trabalhadora. Nos
fundos da Vila corria o rio Tietê – hoje com o leito retificado –, onde a
criançada costumava tomar banho nos dias de verão.
Estudou no “Grupo Escolar Maria Zélia”
para meninos, na Rua 3. As classes eram separadas, o prédio que abrigava a
escola das meninas ficava em frente a dos garotos. Foi sua professora d. Lucília
de Carvalho. Hugo era sempre escolhido para cantar nas festas escolares. Sua
família não tinha rádio e nem vitrola, o menino ficava escutando da janela de
um vizinho os discos de Carmen Miranda, de quem se tornou fã ainda na infância.
Hugo Giovanelli (com o rosto circulado) na formatura do 4º ano no Grupo Escolar dos meninos, em 1935. Foto: reprodução. |
Não foi trabalhar na fábrica como seus irmãos: na parte da manhã estudava e a tarde entregava as encomendas de sapatos para a freguesia do pai.
Havia seis tipos de casas na Vila, que
variavam de acordo com os tamanhos dos terrenos, de 75 a 110 m². As famílias
costumavam sentar à noite nas portas e conversavam sem receio de violência. As
crianças brincavam na rua sem o menor problema. Os inconvenientes eram as
traquinagens da molecada. Muitos imigrantes moravam por ali: italianos,
portugueses, espanhóis e outras etnias.
“Com o tempo a Vila foi modificando de
ambiente. Depois que a Fábrica de Pneus Goodyear comprou uma das partes da
Vila, as ruas 1 e 2, o campo de futebol, a creche e o jardim de infância foram
demolidos e começou o desencanto da minha amada Vila Maria Zélia. Muitos
moradores foram embora e outros morreram de tristeza. Em seguida, a Prefeitura
mudou os nomes das ruas e ninguém se lembrou de homenagear meu pai, que foi o
sapateiro oficial da Vila. A casa que nós moramos está toda reformada. Aliás,
depois que as casas deixaram de pertencer a fábrica e foram
vendidas para os moradores, todos fizeram reformas nos imóveis. Poucas foram as
que restaram intactas. A Vila perdeu a beleza de outrora. O Mazzaropi
filmou aqui, em 1966, o filme ‘O Corintiano’. Foi um sucesso! Naquela época, a
Vila estava conservada. Nos anos 1980, os dois grupos escolares já estavam
desativados e hoje resta isso que você vê: as ruínas e a tristeza da
decadência”, recordou
o artista.
Hugo acompanhado de dois amigos, em 1947 |
Hugo Giovanelli no jardim da Vila, em 1957. Foto: reprodução |
Em maio de 1947, aos 25 anos, casou-se
com Dalila Medici, moradora do Belenzinho. A família Medici tinha uma olaria
muito famosa no bairro. Depois do enlace, o sr. Hugo deixou a Vila e passou a
morar na Rua Catumbi.
D. Dalilia Medici no dia do seu casamento, ocorrido em maio de 1947, na paróquia de São José do Belém. Foto: reprodução |
Trabalhou como técnico têxtil em várias
fábricas de tecelagem. Depois, ingressou no Departamento de Obras Públicas do
Estado de São Paulo, onde esteve até se aposentar como chefe de seção da
administração geral. Lá conheceu o arquiteto Antônio Garcia, que se tornou um
grande amigo e muito auxiliou no trabalho.
Muitas de suas vivências, Giovanelli
registrou no livro Memórias, hoje, amanhã e sempre: Hugo de A a Z, publicado
em 1989, pela editora Ateniense. A capa da obra traz uma foto da capela de São
José, padroeiro da Vila.
O rio Tietê passava nos fundos da Vila Maria Zélia, como vemos nesta foto de 1957/58. Da esq. para dir., vemos, a mãe de d. Dalila, d. Dalila, sr. Hugo e Sandra (filha do casal). Foto: reprodução |
Afonsina Medici[3]
era tia de d. Dalila, irmã do seu pai. Tornou-se tia por afinidade do sr. Hugo,
ele a adorava. Era uma pessoa muito alegre e independente, nascida no
Belenzinho em 1896, contava que quando criança brincava nos túmulos do
cemitério do bairro, que existia onde hoje está o Largo São José.
A família Medici era formada por
imigrantes italianos, no final do século 19 moraram na região da Consolação.
Depois transferiram-se para o Belezinho. Foram proprietários de uma olaria,
famosa na região, que localizava-se num grande terreno entre as ruas Catumbi e
Marcos Arruda, abrangendo parte da atual Praça General Humberto de Souza Mello.
Essa área do Belenzinho era conhecida no final do século 19, como Várzea do
Catumbi, rica em argila retirada das margens do rio Tietê, aliás, do Belenzinho
até à Penha existiram inúmeras olarias, geralmente, de propriedade de italianos
e portugueses imigrantes. A maior parte do escoamento da produção de tijolos e
telhas era feita pela via fluvial.
Após décadas o negócio cessou e o
terreno foi retalhado entre os herdeiros.
Afonsina chegou a se casar com um
italiano, conforme desejo da família, mas ficou viúva logo. Foi trabalhar numa fábrica de vidros e
cristais. Um dia foi mandada embora, com o dinheiro ajuntado, mudou-se para o
Rio de Janeiro e lá viveu durante décadas. Morou em uma casinha de porta e
janela para a rua na lendária Praça Onze. Em seguida, foi admitida como
funcionária na Escola de Enfermeiras d. Anna Nery, na Cidade Nova. Morava no
alojamento do colégio. Era uma funcionária querida pelas alunas e procurava ajudá-las
como possível.
Hugo visitava a tia Afonsina duas vezes
por ano, ela muito a auxiliou. Já idosa, mudou-se para São Paulo e foi residir
com o sr. Hugo e d. Dalila, falecendo aos 81 anos, em 1978. O ateliê de pintura
do sr. Hugo foi batizado com o nome da sua saudosa tia.
Entre os anos de 2008 e 2009, a
Associação Cultural Vila Maria Zélia procurou o sr. Hugo para organizar uma
exposição sobre a Carmen Miranda e também prestar uma homenagem ao “artista da
Vila”, como o chamavam.
A exposição ficou muito bonita e foi o
último trabalho de Giovanelli. Juntamente com alguns amigos colecionadores do
Pátio do Colégio, organizamos um grupo para animar a exposição. Realizamos
vários saraus. Foi um período feliz. Posteriormente, o sr. Hugo se retirou de
qualquer atividade artística, já não saia de casa: estava com 88 anos e sua
saúde estava fragilizada.
Em 8 de março de 2011, alguns dias antes
do seu natalício, o sr. Hugo veio a falecer. Soube da notícia pela sua filha
Sueli. Foi muito triste. Ele pediu para ser cremado, a família atendeu o
pedido. As cinzas foram jogadas em uma cerimônia entre as figueiras do jardim
da Vila Maria Zélia. Infelizmente, não consegui comparecer. Na ocasião, não
consegui folga no trabalho.
Jardim da Vila e suas figueiras, onde foi espalhada as cinzas do sr. Hugo Giovanelli. Foto: Thais Matarazzo, 2015. |
Do grande acervo do sr. Hugo, ganhei das
filhas, algumas peças e livros, diversos itens foram divididos pelos familiares e amigos
colecionadores.
Voltei a Vila Maria Zélia recentemente para uma festa do Jornal do Brás em 2015. Impossível foi não conter a emoção e não se lembrar destes saudosos amigos.
Sr. Hugo em frente à casa onde nasceu e viveu até os 25 anos. A fachada estava modificada. Foto: Thais Matarazzo, 2007. |
Thais Matarazzo e sr. Hugo (com suas criações artísticcas) em uma das reuniões dos Colecionadores no Patteo do Collegio, em 2007. Acervo: Thais Matarazzo |
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[1] Anteriormente publicada na
antologia Vamos falar do Belenzinho? (2017),
Editora Matarazzo.
[2] Olga era imigrante italiana.
Filha de Francesco e Maria Franco, estabelecidos em Amparo, SP. O casal também
veio residir na Vila Maria Zélia. O sr. Hugo sempre contava que a nonna Maria Franco havia ficado cega
quando velhinha. Costumava usar um avental com vários bolsos. Aos domingos dava
um tostão para os netos comprarem um doce. Quando percebia que a criança
retirava uma moeda de outro bolso, pedia para colocar na sua mão e se fosse uma
moeda maior e mais valiosa, Maria mesma trocava por um tostão.
[3] Afonsina Medici (São Paulo, SP,
3/8/1896 – São Paulo, SP, 21/5/1978). Filha de Paulo Medici e Filomena Bulana
(ou Buffana). Foi enterrada no jazido da família no Cemitério da Quarta Parada,
no Belenzinho.
Conheci o sr. Hugo na casa Lomuto e dele tenho algumas pinturas gravuras da Carmen Miranda e algumas correspondencias dele com um amigo fã da Carmen que morava na Inglaterra.
ResponderExcluirEu conheci Hugo Giovanelli circa 2004 no Parei do Collegio. Como sou proficiente em inglês, acabei ajudando-o em sua correspondência com esse fã de Carmen, chamado Paul, marinheuro mercante, q vivia em Nottingham no Reino Unido e um outro, chamado Ron Wakenshaw, de Brisbane em Queensland, Australia. Ambos tornaram-se meus amigos, sendo q Ron visitou o Rio em 2005 e 2009. Hugo Giovanelli era 1 pessoa de coração puro...uma raridade nessa terra de louvores & horrores.
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