Duas fotos promocionais da cantora Cinderela, distribuídas para o público, 1957 |
(3/3/2022)
Há dois dias publiquei uma crônica na internet acerca de uma passagem acontecida com a cantora Esterzinha de Souza, falecida neste Carnaval. O tema é a gravação de discos com músicas carnavalescas da década de 1950. O mote agradou, por isso, vou narrar mais um causo sobre o assunto.
Minha mãe é uma pessoa musical – aliás, como toda família –, ela sempre gostou de cantar e o faz muito bem. Seu repertório é imenso. Quando ela não se lembra de toda letra, é criativa: arranja novos versos tornando-se coautora. Na sua coletânea, têm uma marchinha que sempre canta:
No tempo de Adão
e Eva
o amor era
diferente
a Eva dava a
maçã
pro Adão ficar
contente.
Hoje, coitado do
Adão
trabalha na
repartição
por causa da
maçã
perdeu o paraíso
a culpada foi a
cobra
do Adão perder o
juízo...
Um
dia resolvi perguntar para minha mãe quem havia gravado aquela música. Ela não
soube responder. Disse que aprendeu quando menina ouvindo no rádio. Atualmente,
encontramos farto material de pesquisa na internet para sanar dúvidas, mas há
15 anos, o negócio era diferente. Localizar informações sobre antigas gravações
era um trabalho de garimpo, para ter maior precisão recorria-se, principalmente,
aos livros ou aos colecionadores de discos. Indaguei várias pessoas, algumas se
lembravam da marcha, mas não do nome do intérprete e nem do compositor.
Quem
solucionou o caso foi Esterzinha de Souza. Nem sei por qual motivo comentei com
ela sobre a música.
–
Ah, essa eu me lembro... A marcha é do Alfredo Borba, um compositor que andava
muito lá na Rádio Record, sempre oferecia músicas para gente divulgar ou
gravar. Era uma oportunidade. Nós cantores aproveitávamos, mas como te disse
antes, existia muita porcaria. Quando passava o Carnaval, quebrávamos os
discos. Não valia a pena guardar aquilo. Quem gravou essa música foi a
Cinderela, uma colega nossa. Uma jovem loira bonita, de corpo escultural, boa
amiga e colega. Ela chegou a ganhar um concurso de Carnaval na Record. Seu nome
é Luiza Trevisan. Ela fazia o maior sucesso! – revelou Esterzinha.
A
querida amiga cantora ainda disse que havia tempos que não sabia da antiga
colega. Certa vez, avistaram-se no trânsito, abriram os vidros dos carros e bateram
um papo rápido. Cinderela informou que estava morando no sul de Minas. Com a
ajuda da lista telefônica online e das
dicas da Esterzinha, consegui localizá-la. Não perdi tempo, telefonei,
encontrei boa receptividade e agendei uma visita à artista.
Com
o auxílio dos amigos colecionadores de discos das reuniões do Pátio do Colégio,
consegui reunir em um CD as gravações dos discos 78 rotações da cantora,
incluindo A culpada foi a cobra, de
Alfredo Borba, gravada em 1958 ou 59 – a marchinha que aprendi com a minha mãe.
É mais uma das inúmeras músicas que exploram a história do casal gênesis da
humanidade, cantado, e muitas vezes esculhambado, nos carnavais.
Assim
que a conheci, Cinderela me pediu para tratá-la por Lucinha, seu apelido de infância:
“a ‘Cinderela’ ficou no passado, depois que me casei, em 1962, deixei a
carreira artística. Tudo acabou e agora sou a d. Lucinha”, falou.
De
qualquer maneira, quando entreguei o CD com as suas gravações, ela fez uma cara
de espanto! Não imaginava que os colecionadores os tivessem em seus acervos.
Perguntei
sobre as marchinhas de Carnaval, a resposta foi a mesma de Esterzinha: eram tão
banais que ela não guardou os discos, os quebrou também!
Sobre
A culpada foi a cobra contou-me que devido
à sua popularidade na Rádio Record e nas boates, o Alfredo Borba a procurou
para gravar a música. Cinderela havia conquistado o concurso da “Rainha do
Carnaval de 1957”, tomou parte no filme Vou
te contá (1958), dirigido por Alfredo Palácios, atuava, cantava, dançava e
sapateava, foi apresentadora em programas da TV Record, estava a artista no
auge da carreira. Isso tudo, logicamente, colaborou para o sucesso da
marchinha.
Revelou
que trabalhava muito, pois morava com sua mãe, sendo “arrimo de família. Para
ganhar um cachê a mais, mostrava as pernas.
Afirmou
que para divulgar as músicas no rádio ou gravá-las havia censura. Em geral, um “censor”
aparecia no auditório da rádio ou da televisão para escutar os cantores e
aprovar ou não os seus repertórios.
No
caso de A culpada foi a cobra, pela
letra de duplo sentido, ela achou que não passaria facilmente. Mas, no dia da apresentação,
calhou que ela estava de maiô. Em vez do “censor” prestar atenção à letra, “ficou
de olhos bem abertos” nas pernas de Cinderela. Aprovou a marcha.
A
tal autoridade só não contava que após alguns minutinhos, haveria de escutar os
“pitos” dados pela mãe da artista, exigindo respeito acima de tudo, ela estava
sempre junto da filha, sendo uma verdadeira sentinela!
Coitado
do Adão...
Cinderela no baile de Carnaval onde foi coroada a "Rainha do Carnaval de 1957" |
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