Um dia por vez... Sapatos azuis

 


SAPATOS AZUIS

(Crônica 1 - 10/3/2021)


O primeiro mês do meu tratamento oncológico foi o mais árduo, começou em setembro de 2020 durante a pandemia do Covid-19. 
    O tratamento paliativo consiste em quimioterapia oral, hormonioterapia e imunoterapia. No final do dia parecia que havia sido atropelada por um caminhão. Os efeitos colaterais foram intensos, sentia tonturas, náuseas, fatiga, boca seca, dores nos ossos, mal-estar, fiquei um pouco esquecida e com alternância de humor.
    Não era para menos, com tantos remédios! Mas não pense o leitor que estou me queixando, pelo contrário, são somente constatações daqueles primeiros 30 dias.
    Meu físico estava extenuado pela terapêutica, mas a fé, a coragem, o ânimo, as energias e as ideias continuam em alta. Em nenhum instante pensei em desistir, pois sempre acreditei na luz do final do túnel.
    Não sou de chorar e nem me vitimizar, entretanto, vez ou outra me vinham pensamentos duvidosos referentes ao futuro: será que o protocolo de tratamento daria certo? Será que nunca mais sairia na rua? Será que poderia continuar meu amado trabalho? Será que nunca mais poderia viajar? Será que nunca mais encontraria meus amigos? Será que nunca mais não-sei-mais-o-quê... 
    Acredito que qualquer mudança na vida de uma pessoa cause preocupações, seja de que ordem for.
    2020 começou de maneira promissora para o Coletivo São Paulo de Literatura, do qual faço parte. Nós tínhamos assinado contratos para realização de projetos fantásticos com as secretarias de Cultura municipal e estadual de São Paulo. Chegamos a fazer as primeiras apresentações e saraus, mas em março as atividades foram paralisadas, assim como para todo o Brasil.
    Desde o final de 2018 começamos a incluir nas nossas atividades literárias recursos do teatro, compondo personagens para encenação de pequenas histórias e esquetes divertidos a fim de divulgarmos nossos livros e poemas, e levarmos informação e alegria para o público. 
    Para tanto, a Ana Jalloul e o Ricardo Cardoso arranjaram figurinos e acessórios da década de 1920. Era o tema que exploraríamos em nossos projetos focalizando a Semana de Arte Moderna de 1922, pedido nos editais e chamamentos dos equipamentos de cultura. Gostei tanto da ideia dos meus amigos que fui a uma costureira, encomendei um vestido azul daquele período, ficou uma graça! Comprei luvas de renda, chapéu de feltro, leque, bolsinha de pano, colar de pérolas (postiço), assim nasceu a personagem Yolanda.
    Uma tarde, descendo a Rua d. Veridiana, na volta de um evento no Museu da Santa Casa de São Paulo, entrei em uma loja em que sempre comprava algum acessório novo para essas apresentações. Achei um tucano de pelúcia. Minha ave favorita desde a infância. Comprei o bichinho e o batizei com o nome de Tenório. Ele se tornou o companheiro e mascote da Yolanda. O público amou.
    O único item que não consegui adquirir para o modelo da Yolanda foi um par de sapatos Anabela azuis, muito usado nos anos 1920. Não houve jeito de encontrar. Paciência!
    Regressando ao início do meu tratamento oncológico, minha melhor terapia emocional tem sido a escrita e a leitura. Não deixei de ler e produzir textos em nenhum dia, assim me distrair e ocupava o tempo. Escrevi vários livros e criei uma Biblioteca Virtual aqui no site com todas essas produções, a maior parte infantojuvenil. Tudo para download gratuito. E imagina se a Yolanda e o Tenório também não ganharam as páginas de várias obras?
    Meus pais sempre repetem que não devo ficar aflita, "quando a pandemia passar, com certeza, você estará novamente com seus amigos para novas empreitadas literárias", diz minha mãezinha. 
    Fui animando à medida que o tratamento foi alcançando o resultado desejado, e os efeitos colaterais se tornando mais brandos.
    Certa manhã estava navegando pela internet e vi um anúncio da venda de um vestido (azul, branco e cinza) usado e um chapéu de feltro estilo anos 1920, pertencia à uma atriz que estava se "desapegando" do seu guarda-roupa. Entrei na página e a descrição do vestido caiu como uma luva pra mim. Adquiri a peça. Entendi aquilo como um espelho da esperança. Acho que em outros tempos a compra do vestido não me causaria tanta emoção e alegria como naquele instante. 
    Só faltava agora o par de sapatos azuis. Parece piada, mas uma "mãozinha" me indicou uma loja de sapatos no Rio Grande do Sul. Ahhhhh, finalmente consegui encontrar o calçado desejado.
    O vestido e o chapéu chegaram primeiro, não tirei de dentro da caixa. Esperei pelos sapatos. Uns dias mais tarde, o funcionário dos Correios tocou a campainha, ai, meu coração! Eram os sapatos Anabela!
    Não perdi tempo e num zás-trás me vesti de Yolanda. O figurino ficou ótimo, posso dizer que entrei no túnel do tempo. Quanta felicidade tomou conta do meu coração! Naquele momento tive a certeza que sim, no futuro estarei novamente com meus amigos do Coletivo São Paulo de Literatura. 
    Entendi assim como é importante valorizar de todo coração uma oportunidade, seja ela pequena, média ou grande. São acontecimentos deste gênero, singelos aparentemente, acontecidos no cotidiano, que fazem a nossa verdadeira alegria!
    Continuo aqui cheinha de fé, confiança em D'us e agradecendo ao Eterno por todas as bênçãos que ele me envia! 

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